segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Beber é algo emocional. Faz com que você saia da rotina do dia-a-dia, impede que tudo seja igual. Arranca você pra fora do seu corpo e de sua mente e joga contra a parede. Eu tenho a impressão de que beber é uma forma de suicídio onde você é permitido voltar à vida e começar tudo de novo no dia seguinte. É como se matar e renascer. Acho que eu já vivi cerca de dez ou quinze mil vidas. 


Charles Bukowski

Para uma avenca partindo

Olha, antes do ônibus partir eu tenho uma porção de coisas pra te dizer, dessas coisas assim que não se dizem costumeiramente, sabe, dessas coisas tão difíceis de serem ditas que geralmente ficam caladas, porque nunca se sabe nem como serão ditas nem como serão ouvidas, compreende? Olha, falta muito pouco tempo, e se eu não te disser agora talvez não diga nunca mais, porque tanto eu como você sentiremos uma falta enorme dessas coisas, e se elas não chegarem a ser ditas nem eu nem você nos sentiremos satisfeitos com tudo que existimos, porque elas não foram existidas completamente, entende, porque as vivemos apenas naquela dimensão em que é permitido viver, não, não é isso que eu quero dizer, não existe uma dimensão permitida e uma outra proibida, indevassável, não me entenda mal, mas é que a gente tem tanto medo de penetrar naquilo que não sabe se terá coragem de viver, no mais fundo, eu quero dizer, é isso mesmo, você está acompanhando meu raciocínio? Falava do mais fundo, desse que existe em você, em mim, em todos esses outros com suas malas, suas bolsas, suas maçãs, não, não sei porque todo mundo compra maçãs antes de viajar, nunca tinha pensado nisso, por favor, não me interrompa, realmente não sei, existem coisas que a gente ainda não pensou, que a gente talvez nunca pense, eu, por exemplo, nunca pensei que houvesse alguma coisa a dizer além de tudo o que já foi dito, ou melhor pensei sim, não, pensar propriamente dito não, mas eu sabia, é verdade que eu sabia, que havia uma outra coisa atrás e além das nossas mãos dadas, dos nossos corpos nus, eu dentro de você, e mesmo atrás dos silêncios, aqueles silêncios saciados, quando a gente descobria alguma coisa pequena para observar, um fio de luz coado pela janela, um latido de cão no meio da noite, você sabe que eu não falaria dessas coisas se não tivesse a certeza de que você sentia o mesmo que eu a respeito dos fios de luz, dos latidos de cães, é, eu não falaria, uma vez eu disse que a nossa diferença fundamental é que você era capaz apenas de viver as superfícies, enquanto eu era capaz de ir ao mais fundo, você riu porque eu dizia que não era cantando desvairadamente até ficar rouca que você ia conseguir saber alguma coisa a respeito de si própria, mas sabe, você tinha razão em rir daquele jeito porque eu também não tinha me dado conta de que enquanto ia dizendo aquelas coisas eu também cantava desvairadamente até ficar rouco, o que eu quero dizer é que nós dois cantamos desvairadamente até agora sem nos darmos contas, é por isso que estou tão rouco assim, não, não é dessa coisa de garganta que falo, é de uma outra de dentro, entende? Por favor, não ria dessa maneira nem fique consultando o relógio o tempo todo, não é preciso, deixa eu te dizer antes que o ônibus parta que você cresceu em mim de um jeito completamente insuspeitado, assim como se você fosse apenas uma semente e eu plantasse você esperando ver uma plantinha qualquer, pequena, rala, uma avenca, talvez samambaia, no máximo uma roseira, é, não estou sendo agressivo não, esperava de você apenas coisas assim, avenca, samambaia, roseira, mas nunca, em nenhum momento essa coisa enorme que me obrigou a abrir todas as janelas, e depois as portas, e pouco a pouco derrubar todas as paredes e arrancar o telhado para que você crescesse livremente, você não cresceria se eu a mantivesse presa num pequeno vaso, eu compreendi a tempo que você precisava de muito espaço, claro, claro que eu compro uma revista pra você, eu sei, é bom ler durante a viagem, embora eu prefira ficar olhando pela janela e pensando coisas, estas mesmas coisas que estou tentando dizer a você sem conseguir, por favor, me ajuda, senão vai ser muito tarde, daqui a pouco não vai mais ser possível, e se eu não disser tudo não poderei nem dizer e nem fazer mais nada, é preciso que a gente tente de todas as maneiras, é o que estou fazendo, sim, esta é minha última tentativa, olha, é bom você pegar sua passagem, porque você sempre perde tudo nessa sua bolsa, não sei como é que você consegue, é bom você ficar com ela na mão para evitar qualquer atraso, sim, é bom evitar os atrasos, mas agora escuta: eu queria te dizer uma porção de coisas, de uma porção de noites, ou tardes, ou manhãs, não importa a cor, é, a cor, o tempo é só uma questão de cor não é? Por isso não importa, eu queria era te dizer dessas vezes em que eu te deixava e depois saía sozinho, pensando também nas coisas que eu não ia te dizer, porque existem coisas terríveis, eu me perguntava se você era capaz de ouvir, sim, era preciso estar disponível para ouvi-las, disponível em relação a quê? Não sei, não me interrompa agora que estou quase conseguindo, disponível só, não é uma palavra bonita? Sabe, eu me perguntava até que ponto você era aquilo que eu via em você ou apenas aquilo que eu queria ver em você, eu queria saber até que ponto você não era apenas uma projeção daquilo que eu sentia, e se era assim, até quando eu conseguiria ver em você todas essas coisas que me fascinavam e que no fundo, sempre no fundo, talvez nem fossem suas, mas minhas, e pensava que amar era só conseguir ver, e desamar era não mais conseguir ver, entende? Dolorido-colorido, estou repetindo devagar para que você possa compreender, melhor, claro que eu dou um cigarro pra você, não, ainda não, faltam uns cinco minutos, eu sei que não devia fumar tanto, é eu sei que os meus dentes estão ficando escuros, e essa tosse intolerável, você acha mesmo a minha tosse intolerável? Eu estava dizendo, o que é mesmo que eu estava dizendo? Ah: sabe, entre duas pessoas essas coisas sempre devem ser ditas, o fato de você achar minha tosse intolerável, por exemplo, eu poderia me aprofundar nisso e concluir que você não gosta de mim o suficiente, porque se você gostasse, gostaria também da minha tosse, dos meus dentes escuros, mas não aprofundando não concluo nada, fico só querendo te dizer de como eu te esperava quando a gente marcava qualquer coisa, de como eu olhava o relógio e andava de lá pra cá sem pensar definidamente e nada, mas não, não é isso, eu ainda queria chegar mais perto daquilo que está lá no centro e que um dia destes eu descobri existindo, porque eu nem supunha que existisse, acho que foi o fato de você partir que me fez descobrir tantas coisas, espera um pouco, eu vou te dizer de todas as coisas, é por isso que estou falando, fecha a revista, por favor, olha, se você não prestar muita atenção você não vai conseguir entender nada, sei, sei, eu também gosto muito do Peter Fonda, mas isso agora não tem nenhuma importância, é fundamental que você escute todas as palavras, todas, e não fique tentando descobrir sentidos ocultos por trás do que estou dizendo, sim, eu reconheço que muitas vezes falei por metáforas, e que é chatíssimo falar por metáforas, pelo menos para quem ouve, e depois, você sabe, eu sempre tive essa preocupação idiota de dizer apenas coisas que não ferissem, está bem, eu espero aqui do lado da janela, é melhor mesmo você subir, continuamos conversando enquanto o ônibus não sai, espera, as maçãs ficam comigo, é muito importante, vou dizer tudo numa só frase, você vai ......... ............ ............. ............ .......... ........... ............. ............ ............ ............ ......... ........... ............ ............ sim, eu sei, eu vou escrever, não eu não vou escrever, mas é bom você botar um casaco, está esfriando tanto, depois, na estrada, olha, antes do ônibus partir eu quero te dizer uma porção de coisas, será que vai dar tempo? Escuta, não fecha a janela, está tudo definido aqui dentro, é só uma coisa, espera um pouco mais, depois você arruma as malas e as botas, fica tranqüila, esse velho não vai incomodar você, olha, eu ainda não disse tudo, e a culpa é única e exclusivamente sua, por que você fica sempre me interrompendo e me fazendo suspeitar que você não passa mesmo duma simples avenca? Eu preciso de muito silêncio e de muita concentração para dizer todas as coisas que eu tinha pra te dizer, olha, antes de você ir embora eu quero te dizer quê.

Caio Fernando Abreu

Orgulhagulha

Orgulho
agudo
agulha
afunda.

sábado, 27 de agosto de 2011

Sobre erros de português e escaladas

Uma das minhas características mais marcantes era abominar erros de português. Assim mesmo, direto e rabugento.
A gente espera de um relacionamento - além das flores, alegrias e sóis habituais - que ele nos permita crescer e quem sabe em seguida melhorar os próximos relacionamentos. Não me entenda mal, é claro que eu sei que durante o relacionamento a última coisa na qual a gente pensa é no próximo relacionamento, mas o próximo vai existir, quer a gente queira, quer não, porque é assim que as coisas funcionam.
Daí eu me enxergo escalando a montanha da tolerância e aprendendo, com você, a aceitar as coisas que eu mais abominei durante bons anos, como por exemplo os erros de português. A princípio, são positividades e crenças na retribuição cármica universal, mas quando a gente se dá conta, escala tantas montanhas virtuosas e vai querendo se transformar em algo tão divinamente bom, que em certo ponto acaba nem se reconhecendo mais.
E se abominar os erros de português fosse justamente o que há de mais verdadeiro e essencial em mim? E se é precisamente isso que me constrói assim do jeito que sou, e que em determinado momento me tornou perfeito pra você?
Quando a gente está no topo, descer é difícil. Pra baixo todo santo ajuda não é válido pras nossas neuroses pequeno-burguesas. Tirar as máscaras que construímos e ajustamos durante uma vida inteira um com o outro revela pelos, rugas e cicatrizes. Mas acima disso, revela quem de fato somos e negá-lo é inútil.
Resta ao amor provar a força dos seus exércitos combalidos e entrar em mais essa batalha pra descobrir enfim se é capaz de superar o que há de mais íntimo, belo e feio dentro de mim. E de ti. Como abominar erros de português, por exemplo.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Um dos fragmentos de viagem:

"É manhã de Natal, neva lá fora e colocamos os clássicos da Disney pra tocar na sala. Pensei que passar o natal no exterior sem família seria tristíssimo, mas esse hábito que eles têm de comemorar a data na manhã do dia-de-fato e não na noite anterior ameniza muito as coisas. Eu sempre falo do sol e pra mim ele de fato consegue iluminar qualquer situação. Claro que às vezes a luz não transborda os cômodos aqui dentro e nem consegue penetrar tão fundo pelas frestas, mas ainda assim é luz. Ao menos penumbra, ao menos sombras, silhuetas, não a escuridão.
Como eu dizia, a manhã ensolarada lá fora ainda mais clara pela neve espalhada pela rua e os clássicos de natal da Disney trataram de aquecer a sala. E confraternizar em inglês com sotaque italiano, espanhol, francês, australiano é sem dúvida uma experiência rica demais pra eu deixá-la se perder na sombra. Afinal de contas, como eu falei, há sol. E neve branca."

Londres, 25 de dezembro de 2010.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Ponto Final

Pontos finais aparentemente são o grafismo mais simples. Podem ser ridicularizados ao lado da imponência de exclamações e interrogações e mesmo as vírgulas parecem esteticamente superiores. Mas eles, os pontos finais, doem. Por isso mesmo, devem ser utilizados com sabedoria. Um ponto final quando, mal colocado, gera especulações sobre a razão de estar ali, justamente onde a história se desenvolvia tão bem. Quando fazia sol e estávamos perto do mar.
Às vezes a gente pensa que o desenrolar das tramas fúteis e pessoais precisa respirar (talvez nós mesmos precisemos respirar um pouco sozinhos) e enche os períodos de pontos finais. É claro que nessa situação, eles não são finais de fato e isso é bem complicado porque o poder de um ponto final consiste exatamente na determinação que ele dá a uma situação: O fim maiúsculo e singular. A partir do momento em que O ponto final se transforma nos pontos finais, ele não impõe mais o menor respeito e lá pra frente mesmo quem cravou o ponto ali não vai mais acreditar que ele significa alguma coisa. 
Bonito mesmo é ver uma história correndo-pensando que é luz e se desenrolando esticando até o limite linhas e construções absurdas se transformando em parágrafos selvagens sem interrupções e ninguém realmente se preocupa com isso porque se o enredo é bom quem vai lembrar dos pontos finais quem precisa respirar se a idéia agora é só o pirar mesmo sem res nenhum?
Pingando pontos finais aqui e ali, eu já me acho meio ridículo. Mas a preocupação mesmo é com a maiúscula-singular, com O ponto final que eu creio e espero que esteja longe, tão longe que nem as construções mais loucas nos parágrafos mais longos conseguirão alcançar tão cedo.


Só escrevo

Só escrevo quando há tristeza. A julgar pelo tempo sem letras-palavras-linhas-sentimentos, essa é uma excelente notícia.