segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ideal

Eu te construí. Foi assim mesmo, seco e simples. Para além da idealização quando não se voava ainda tão alto, eu te fiz nos detalhes. É como se pegasse a pedra já naturalmente brilhante (isso não me atrevo a negar) e lapidasse, valorizando aqui e ali e escondendo as outras partes.
Chegam os fins. Um causa orgulho, até me distancio pra ver melhor. O outro é doloroso porque afinal equivale a jogar fora o meu próprio esforço e quebrar a obra em mil pedaços. Te quebrar em mil pedaços.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Ser de sagitário

O cavalo e o arqueiro sempre foram muitíssimo diferentes. Mas já havia tempo estavam assim, irremediavelmente unidos pelo tronco. Não era algo fácil de descosturar, a ligação incluía vísceras e a essa altura, também o coração. A metamorfose aglutinou os dois aparelhos cardíacos e agora parecia que um único órgão era responsável por bombear sangue e vida aos dois corpos hibridizados.
Chegou um dia e o cavalo precisou ir pra longe. Podiam aparecer mil desculpas, promessas de vida melhor, mas lá no fundo o cavalo sabia mesmo que ir embora fazia parte de um ritual particular e instintivo; sua natureza selvagem chamava. O arqueiro não gostou da idéia. Separar-se parecia loucura e podia acabar resultando na morte dos dois. Ou mais provavelmente de um, o que ficasse sem o coração. Decidiram ir juntos e atravessaram mares, florestas e cidades e foram a terras onde se falavam línguas impossíveis.
Foi um tempo de aventuras e tristeza. O cavalo queria correr pelos campos e relinchar com os outros cavalos que encontrava pelo caminho, livres. Mas o arqueiro tinha rédeas curtas. E o cavalo de fato precisava disso para sua própria segurança, pois o caminho era verde, mas as noites escondiam abismos e pedras afiadas. Os desentendimentos eram grandes, mas arqueiro e cavalo sabiam que tinham que ficar juntos. E ficaram.
Não que as coisas tenham sido fáceis. Aconteceu mesmo de o arqueiro se zangar com as impulsividades selvagens do cavalo e procurar o calor de braços humanos. Para o cavalo, a jornada resultou em uma das lições mais tristes que aprendera em seus vinte e poucos anos. Percebeu que correr pela relva às vezes não é o suficiente e precisava mesmo de um estábulo conhecido e com palha quente. Precisava mesmo do arqueiro e de suas rédeas pra lhe dar equilíbrio e evitar tombos maiores.
Voltaram diferentes, o arqueiro e o cavalo. O animal tem o couro dilacerado pelas cordas que o prendem, as feridas sangram. O arqueiro tem medo de cair e puxa mais forte para manter o controle. E chega um ponto, quando se menos espera, que tentar aprisionar a parte animal do centauro faz com que ela se descontrole ainda mais e sonhe em correr ainda mais rápido e pular ainda mais alto.
Ser de sagitário não é conviver com dois em um único corpo, mas com três. Há o id animal e o superego humano em uma batalha que não acaba até a morte de um deles. Ou dos dois. O ego é o que sagitário tem de mais puro, um diplomata evitando a desgraça e ruína dos dois. Dos três.
O cavalo queria se ver livre das celas (e quem sabe do próprio arqueiro). Procurava por outros cavalos, aqueles que não tinham arqueiros, e sentia inveja e pena deles. De uma maneira ou de outra, o cavalo precisava disso: da aventura, do calor pulsando na companhia de seus iguais. Quer o arqueiro quisesse, quer não.
Nesse jogo de liberdade, o cavalo quase chegou a criar asas antes de, desesperado, o arqueiro pegar a sua lâmina mais afiada – são tantas! – e desferir um golpe na própria cintura para separar homem e bicho. Até agora, não se sabe o que aconteceu aos dois (ou ao um). O centauro deita no próprio sangue e ainda é muito cedo pra dizer se a ferida pode cicatrizar ou se animal e humano estão agora separados. E se for esse o caso, se ainda irão viver.

Disparo

Chega uma idade e a gente parece que se encontra em um plano cartesiano onde somos a reta-distância-mais-curta-entre-dois-pontos que precisa estar ascendente-pra-sempre sem tempo de cair – seja de tristeza, de dor ou de porre mesmo – porque afinal somos adultos responsáveis e pelo amor de Deus coloque essa cabeça no lugar senão você vai. Mas eu não quero já são vinte-e-um-anos-agora e quer saber o que mais eu não fazia a menor questão de entrar nessa paranóia de procurar concurso público e virar as madrugadas trabalhando e ganhar muito dinheiro porque afinal já são vinte e um e eu preciso sair de casa e arrumar um lugar pra morar ser independente enfim tomar rumo você sabe. A partir de agora somos eu e você e o que a gente conseguir construir juntos nem que pra isso seja preciso nunca mais rolar escada abaixo feliz porque essa noite você já nem cabe mais dentro de si nunca mais cabelos coloridos nunca mais pintar fora dos limites nunca mais sonhar em ser feliz nunca mais. Daí você se prende e se amarra na superfície gritando seco – às vezes a voz sai – implorando pra não te tirarem de lá mas as pessoas são assim mesmo elas querem te apresentar a maturidade a independência o progresso a felicidade e te puxam pra luz pro mundo real tiram a mamadeira da sua boca te levam pra longe daqui olha que orgulho você vai dar mas tira esse all star velho e as calças vermelhas porque você já não é mais criança quantas vezes eu vou precisar dizer? Mas eu ainda mantenho alguns momentos meus vez em quando escondido eu pinto a cara e brinco que não tenho responsabilidades nem medos só que dura pouco e sempre acabo pegando no sono não antes daquele quarto de hora com pensamentos só nossos em que consigo entender que só é possível crescer pra cima amputando os braços, as pernas e as asas que cresciam nas laterais.