segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Inverno


No dia em que fui mais feliz, eu vi um avião. E ele não se espelhou no seu olhar até sumir. Na verdade, ele se espelhou no meu olhar, porque eu era o único par de olhos ali. O único que tinha algum sentido, eu quero dizer, porque em um aeroporto internacional de uma capital européia, a gente encontra todos os tipos de par de olhos. São azuis, arregalados, negros, puxados, sonolentos, radiantes ou encharcados de lágrimas. Mas de olhos que realmente importassem pra mim ali no meio de toda aquela gente, só mesmo os meus.
E os meus estavam embotados por uma ansiedade que eu nunca havia sentido antes. Ansiedade que me fez passar a noite em claro fantasiando o dia seguinte, o dia que você ia me receber com os braços abertos e eu ia ouvir a sua voz de novo, de novo no meu ouvido, sem telefone, computador ou qualquer máquina entre a gente. Era assim que eles estavam, os meus olhos, cansados e sonolentos pela madrugada insone, mas vidrados no avião. Aquele avião enorme que me tiraria dali e me levaria de volta pra casa. Home is where the heart is, lembra?
Eu embarquei e a sensação que eu esperava, a sensação que todos esperavam de mim era guardar com saudade aqueles lugares frios, guardar as águas termais de Budapeste, as construções milenares atenienses, guardar comigo o gosto do café e dos cigarros de Paris e as canções daqueles fins de tarde venezianos. Guardar comigo aquele crepúsculo na Piazza Spagna em Roma e a valsa vienense tocando, todos aqueles espetáculos... Eu ao menos poderia ter olhado praquilo tudo, praquele país, praquele continente inteiro e lamentado um pouquinho porque, quem sabe?, aquela poderia ser a última vez que os meus olhos embotados miravam essas coisas.
Mas não importava. Lembra que eu te fiz uma ligação logo antes de embarcar? Eu disse que tinha perdido uma conexão e que só poderia voltar na semana seguinte, mas é claro que você não acreditou. Não acreditou porque mesmo sem conseguir ver os meus olhos marotos contando mentiras, você podia ouvir a minha voz entusiasmada. E eu era inteiro felicidade. Eu não cabia em mim, aquela sensação de te ver ainda essa noite, de te abraçar e sentir o teu cheiro de novo, aquela idéia de que finalmente passaríamos mais uma noite juntos, como antigamente. Sem dar boa noite pelo computador, sem dormir te olhando através daquela tela ao lado da cama e acordar aflito no meio da noite porque a conexão com a internet caiu.
Eu vi o avião e foi ali que começou a felicidade. A partir daquele momento, eu tinha certeza que o antigamente voltaria. Embarquei e comecei a chorar no mesmo instante. Ninguém nas poltronas do meu lado, tiraram a criança italiana que não parava de chorar da fileira atrás de mim, as opções de filme eram razoáveis. Paz. O avião nem tinha deixado o solo e a minha cabeça já havia cruzado o oceano, como tantas vezes antes.
Senti frio e pensei que aquela era a última vez. A última vez que eu sentiria frio, porque logo mais... As lágrimas continuavam caindo e eu não fazia o menor esforço para cessá-las porque elas eram boas, eram de pura felicidade. Eu já estava olhando aquele velho continente de cima e logo ele começou a se afastar, o oceano estava aos meus pés, eu acompanhava na tela em frente à poltrona a distância que faltava, e era tanta, e demorou tanto, e foi tanto-tanto. Mas chegou e eu não podia acreditar, Brasil de novo, eu podia conversar e ser entendido sem maiores complicações e, meu Deus, você estava logo ali fora da sala de embarque bem do jeito que eu te deixei. Como antigamente.
Mas a fila da imigração estava impossível e as pessoas queriam conversar, mas meus olhos não se concentravam nelas, eu olhava o duty free e pensava no perfume que poderia comprar pra te agradar. Não mais um presente, já eram tantos, mas pra eu usar, porque eu queria que você gostasse do meu cheiro mais uma vez, como antigamente. Não achei o perfume, “moço, o senhor tem flores?”, não havia flores. A fila impossível, “próximo!”, era minha vez; “Bem vindo ao Brasil, senhor”. O coração disparado, dis-pa-ra-do.
Eu olhava pelo vidro e não te encontrava, meu Deus, aconteceu alguma coisa? Seu vôo atrasou? Você não estava esperando por mim,eu ficaria sozinho ali? As malas não chegavam, pedi ajuda pra funcionária da companhia, “por favor, as minhas malas”. Não havia mais bagagens nas esteiras, talvez seja uma dessas separadas aqui no canto. Era. Peguei correndo, a saída era logo ali, logo ali estava você, logo ali na saída. As lágrimas se anteciparam e chegaram antes de mim.
Mas os homens queriam revistar as minhas malas, “por que duas tão grandes , senhor?”. Foram meses fora, meses, vocês entendem?, meses sem você, meses sem tantas coisas. E foram meses de inverno, meses de neve, então é claro que são tantas malas, porque têm casacos e botas, além dos presentes, muitos presentes. Porque eu gosto de dar presentes e eram tantas as coisas que me lembravam você...
Finalmente, saí e você estava ali. A gente não precisou se olhar, a gente queria a pele, o toque, o cheiro. E foi um abraço, foi o melhor abraço da minha vida, você lembra? Posso ter milhares de reclamações sobre tudo a nosso respeito, mas a intensidade... Aquele abraço que me fez esquecer malas, computador, tudo que antes valia alguma coisa estava perdido, éramos só nós dois naquele saguão cheio. E as palavras faltaram, as mãos não sabiam onde ficar, só procuravam pelo teu corpo, pelo teu rosto. Um cigarro. Dois cigarros. No terceiro, a gente já conseguia conversar e o sorriso não saía do rosto, lembra? Como antigamente.
Você chamou o táxi. Você resolveu tudo, e isso é uma das coisas que me fez enlouquecer de amor, e você sabe perfeitamente disso. Eu não sabia de hotel, não sabia de praia, não sabia de jantar, não sabia de nada. Eu não sabia de música e nem de pétalas de rosas pela cama. Ali estava a felicidade, nesse não se importar por não saber. Mais, nesse fazer questão de não saber, nesse confiar de olhos vendados (literalmente, lembra?). Felicidade. Fe-li-ci-da-de.
A ligação pros amigos, “já estou no Brasil, aproveitem essa festa de aniversário no sítio. Divirtam-se, amo vocês. Dentro de dez dias,”. Era aquele momento, aquilo era a felicidade. Aquilo era antigamente. Aquilo foi pelo que eu vivi os últimos meses. Mas passou. Como tudo, passou. O antigamente ficou pra trás, como tinha de ser. Ainda assim, esse foi o dia em que fui mais feliz. Foi o dia em que eu vi um avião, o resgate que me levou de volta ao antigamente, me levou pra onde o meu coração estava, me levou pra casa.  

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